O lugar trazia uma incomum sensação de
conforto a ela. Mesmo sempre receosa, ela deixou seus ombros relaxarem conforme
o analisava com os olhos brilhantes, sobretudo naquele momento. Na memória, um
lampejo de que o campo de roseiras lhe era familiar; muito embora ela não
conseguisse se lembrar de como ou quando chegara ali.
Seus dedos passearam pelas pétalas das
rosas brancas que davam-se ao seu redor, mas não precisou caminhar muito para
perceber que algo ali estava fora dos eixos. Sentado em uma tora de madeira
rústica, via-se a figura de um homem. De barba loura rala e longos cabelos
penteados para trás, ele a encarava tão furtivamente que ela quase saiu
correndo.
Mas não o fez. Ao invés, caminhou até
onde ele parecia esperar por ela, meio assustada por tê-lo visto tão de
repente, meio triste por saber que mais alguém estava no lugar que mais lhe
transmitira segurança em todo o mundo. Chegando perto, ela notou, o homem não
sorria, embora a observasse com certa ternura e divertimento nos olhos. O coração
dela bateu forte dentro do peito e, antes de sentar-se ao seu lado — coisa essa
da qual ela não estava certa que faria —, disse:
— Ei, que lugar é esse?
O homem deu de ombros.
— Não sei. Me diga você — respondeu ele,
arrogante, mas sem deixar de encará-la. Sem poder afastar o modo como se sentiu
ofendida pela má resposta do homem, ela conteve a língua e analisou o lugar
pela vigésima vez. O campo de rosas parecia muito com o que havia no quintal de
sua avó, mas ela tinha certeza de que ele não era tão extenso. Fazia vários
anos que ela morrera. Desde então, a casa fora vendida e ela nunca mais
cultivara rosas com a avó, coisa da qual sentia bastante falta. Inclusive,
lembrava-se de estar pensando nisso pouco antes de dormir, noite passada...
— O que está fazendo aqui? — perguntou
ela, virando-se para o homem mais uma vez, quase sem conseguir encarar seus
olhos claros e penetrantes. Decidiu que não aceitaria um “não” como resposta,
desta vez. Por mais desagradável que pudesse ser, ele era o único que poderia
dizer-lhe onde ela havia ido parar.
O homem sorriu, pela primeira vez exibindo
seus alinhados dentes brancos. Se não estivesse tão confusa, talvez ela até se
atraísse por ele.
— Vim te dar um aviso.
— Você me conhece?
— Eu conheço todo mundo. Não quer se
sentar?
Ela olhou para a tora de madeira ao lado
de onde ele se sentava, mas não se sentia confortável ao lado do homem.
Recusou, sem muitas cerimônias. Estava mais preocupada em saber de onde ele a
conhecia; e esse foi seu próximo questionamento.
— Não te conheço de lugar nenhum —
respondeu ele, parecendo retirar sujeira de suas próprias unhas.
— Você acabou de dizer que me conhece.
— E conheço.
— De onde?! — irritou-se ela.
— Lugar nenhum — repetiu ele,
serenamente, sem se importar de ter de reproduzir a mesma fala mais de uma vez
para a total compreensão dela. Muito embora ela não pudesse se imaginar mais
confusa do que já estava.
— Quem é você, afinal?!
O homem sorriu, ameno.
— O amor.
Um momento de silêncio seguiu-se, então;
por parte dela, puro espanto e descrédito. Por parte dele, a tranquilidade
sempre branda, emanando.
— O amor?
— O amor.
A sensação de que aquele homem estava
brincando com ela nunca estivera tão proeminente como estava naquele momento.
Honestamente, ela não sabia se devia continuar surpresa ou irritada pela sua
audácia. Mas, como geralmente fazia quando sentia-se desdenhada, sorriu.
— Tudo bem, então você é o amor.
— Sou.
— Em forma de homem.
— Este corpo é temporário, além de não
ser físico, como você já deve ter sabiamente imaginado.
Ela o encarou, tendo a certeza de que,
das duas uma: ou aquele homem era maluco, ou ela o era.
— Não, amor, eu não imaginei nada.
Perante seu descaso, ele, o declarado
Amor, deixou-se sorrir — ainda mais desdenhosamente e sarcasticamente do que ela.
— Deixarei bem claro, portanto — sua voz
era a de como se estivesse explicando a uma criança de cinco anos como usar o
banheiro: — você está sonhando. Este é, minha cara, o lugar que você mesma
desenhou como seu lugar seguro.
Ela fechou os olhos cuidadosamente, sem
acreditar em uma palavra do que aquele homem estava dizendo. Tentou lembrar-se
da última coisa que fizera antes de aparecer no estranho imenso jardim.
Ela pensava em sua avó.
— E o que você faz aqui, então?! — ela
perguntou, novamente, com acidez. Se estivesse mesmo sonhando e houvesse
projetado a si mesma para seu lugar seguro, não cabia a homem nenhum a
autorização de visitá-lo sem seu consentimento prévio.
O homem sorriu outra vez.
— Eu vim te avisar que estou vindo.
Não havia uma forma de ela estar mais
confusa do que estava naquele momento.
— Mas você já está aqui.
— Não foi isso o que eu quis dizer.
Ou talvez houvesse.
— Cara, você apareceu aqui do nada, diz que é o amor e que veio me
avisar de que está vindo quando estamos aqui, conversando, cara a cara — disse
ela, tentando mostrar em palavras o quão ridícula toda aquela situação era. —
Você é maluco.
O homem, dessa vez, deixou-se rir com
naturalidade. Como se a risada fosse parte
dele.
— Lembre-se que este é seu sonho, minha
cara — as rugas que se formavam no canto de seus olhos claros ficaram ainda
mais evidentes. — De acordo com sua lógica, a única maluca aqui é você mesma.
Deixe sua teimosia de lado, pelo amor de Deus.
Ela olhou para seus próprios dedos,
chegando a conclusão de que, de fato, devia estar enlouquecendo, pois não havia
uma explicação mais plausível. Ou isso, ou aquilo era simplesmente o sonho mais
estranho e real de sua vida.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Já lhe disse; vim avisar a você que
estou vindo.
— E o que isso significa?
Pela primeira vez, o homem pareceu
sorrir com ternura, sem sarcasmo ou divertimento no semblante.
— Significa que, em breve, você irá
sentir o amor em sua forma mais pura.
— Então eu vou me apaixonar?
— Talvez sim; talvez, não. Eu tenho muitas
variações.
A cabeça dela estava começando a doer.
— E qual é a necessidade de você invadir
meu sono para me avisar de que está vindo?
O sorriso terno estava de volta ao
semblante do homem, mas seus olhos haviam mudado de cor. Agora eram
medianamente castanhos e a barba, anteriormente loura e rala, sumira de seu
rosto. Como se ele houvesse rejuvenescido vinte anos em dois minutos, fora do
alcance dos olhos dela.
— Faço isso com todas as pessoas.
Preparo seus corações para avisá-las de que estou próximo.
— Sua aparência.
— O que há?
— Mudou. Você está mais jovem.
— Como eu disse, tenho muitas variações
— ela pôde notar que os dentes do jovem homem diante dela, agora, eram menores
e pouco mais tortos. E, mesmo assim, não conseguiu amedrontar-se. — Você me
enxerga como quiser enxergar, minha cara. Todos o fazem.
Ela colocou a cabeça entre as mãos,
tentando inutilmente conciliar os pensamentos. Não fazia, simplesmente, o menor
sentido que o amor em pessoa aparecesse
em seu sonho e lhe dissesse todas aquelas coisas. Para início de conversa, como
poderia um sentimento assumir uma — ou duas, no caso — forma humana?!
— Se é mesmo o amor, por que é tão
sarcástico e amargo?! — as palavras saíram da boca dela antes mesmo que ela
pudesse contê-las. Se o amor era tão bom, como ao conversar com ela, seria tão
antipático?
— Repito, outra vez, minha cara: tenho
muitas variações. Também sou chamado de caridade, amizade, dor (muito embora o
termo não se aplique somente a mim), ciúmes, e até mesmo... ódio — os olhos
dele, mais escuros, crepitaram aos dela. Sentiu-se estremecer antes que pudesse
engolir em seco. — Existem milhares formas de se amar e, queira você ou não,
todos os fazem. Mesmos os corações mais escuros contém amor.
— E você cuida de todos eles — sugeriu
ela.
— Não, eu estou em todos eles.
— E avisa a todas as pessoas que estão
prestes a amar.
— Sim.
— Eu sou uma delas.
— Sim.
— Quem eu amarei?
— Quanto a isso, eu não posso lhe contar
— ele levantou-se, mas não foi em direção a ela. Ao invés, retirou uma rosa da
plantação e, sem importar-se com os dedos rasgados nos espinhos e no sangue que
escorria, cheirou-a. — Meu trabalho é apenas avisar a você que estou vindo e
que minha chegada mudará sua vida.
Talvez pela visão de sangue ou pelas
suas palavras, ela sentiu-se estremecer outra vez. Fechou os olhos por apenas
dois segundos, procurando buscar qualquer indício de sanidade que houvesse em
sua mente. Mas, quando reabriu-os, o sangue sumira da mão do homem; ele se
tornara um garoto de treze anos, cabelos ruivos dispersando-se por toda a
cabeça, e as sardas no nariz e nas bochechas acentuaram-se quando ele sorriu
para ela novamente.
— E se eu não quiser amar? — perguntou
ela.
O menino retirou uma pétala da rosa.
— Não amará. Se nem Deus pode controlar
teu livre arbítrio, não serei eu que o farei.
— Mas o amor cega e controla as pessoas.
— Tolice — o menino deu de ombros,
arrancando outra pétala e jogando-a ao vento. — Os seres humanos nunca são
corajosos o suficiente para assumirem seus próprios atos. Caso não queira amar,
querida, você não amará. Mas isso não fará com que eu saia do seu lado.
— E quanto aos meus pais? Eles se amavam
no início do casamento, mas agora mal se falam! Se você sempre vai estar ao meu
lado, por que não pôde estar ao lado deles?!
O garoto atirou mais uma pétala ao
vento, tendo o cuidado de soprá-la para fazê-la voar ainda mais alto.
— Não só tenho muitas variações como,
também, posso ser instável. Caso eles tenham se amado no início do casamento,
ainda se amam. Lembre-se de que também sou a dor. Se usardes mal de mim, pode
não colher boas consequências. Sempre aviso a todas as pessoas, mas não é
sempre que sou ouvido. Tome a si mesma como exemplo.
Ela não percebeu que queria chorar até
duas lágrimas cruzarem suas bochechas, impiedosamente. Odiava falar sobre os
pais. Odiava falar sobre o amor — sobretudo quando ele próprio estava a sua frente.
— Mas você faz todas aquelas pessoas
fazerem loucuras por você. Deve estar orgulhoso — disse ela, quase enojada. —
Milhões de músicas e poemas, todos sobre você. Livros, quadros, álbuns de
músicas. E quanto a todas as pessoas que vivem para você? E quanto a todas as
pessoas que morreram por você? E quanto a todas as pessoas que se tornam
obsessivas compulsivas e matam, em seu nome, por sua causa?!
O garoto estava sorrindo, e ela pôde
notar que, dessa vez, tinha aparelho nos dentes. Sua pele, anteriormente
branca, quase avermelhada, estava negra. Os olhos escuros a encararam com
divertimento, mais uma vez. Agora ele tinha por volta de vinte anos de idade.
— Responda-me, minha cara — disse ele. —
Quando um homem morre por cirrose, a culpa é dele por ter ingerido cerveja até
acabar com a própria vida, ou do álcool por simplesmente existir? — ela
manteve-se calada e o homem prosseguiu: — Eu simplesmente existo, nos corações,
nas músicas, nos poemas. Simplesmente sou usado e abusado todo o tempo, para
bons e maus fins. Os seres humanos têm seu livre arbítrio e usam-me o quanto
bem entenderem. Minha função, minha cara, é apenas manter-me vivo entre os
homens e avisá-los de quando estou perto.
— E por quê?! — ela esbravejou antes que
pudesse se controlar. — Por que precisa me avisar de algo que sabe que vai
acontecer, mas sem poder me dizer exatamente o que é?! Que diferença,
honestamente, isso faria na minha vida?!
Seus olhos eram tão abrangedores que iam
até o fundo de sua alma, de sua existência. Calmamente, como sempre, ele disse
a ela:
— Porque, assim, posso fazer com que
você acredite na minha existência antes de me sentir — voltando-se para a rosa,
ele deixou a última pétala viajar pelo ar, respirando fundo em seguida. — E
posso avisar a você que sentir-me não será fácil, e que você deverá, minha
cara, ser bastante prudente. Aviso a você: estou perto, estou vindo, e quando
eu chegar, você deverá estar preparada para ter sua vida virada de cabeça para
baixo.
Os olhos dela estavam presos aos
próprios pés.
— Num bom ou mau sentido?
— Isso não cabe a mim.
Quando os olhos dela levantaram-se outra
vez, o amor transformara-se no mesmo homem que ela encontrara pela primeira
vez, de barba e cabelos claros. Sentiu uma súbita vontade de chorar e
segurou-se com toda a força que tinha.
— Eu vou me lembrar disso quando
acordar?
O amor fez que não com a cabeça.
— Isso não será possível.
— Como vou saber que você virá a mim, então?
Aproximando-se mais do que jamais havia
se aproximado naquele intervalo do tempo, o amor tocou o rosto dela e
sussurrou-lhe, afavelmente:
— Confie em mim, minha cara. Você
saberá.
Tão lindo, tão simples, tão profundo e tão sábio. Aquilo que todos, no fundo, sabemos, mas nem sempre queremos aceitar - o que, claro, só piora tudo.
ResponderExcluirTalvez seja hora de crescer e aceitar que o amor é apenas um sentimento. Não o podemos culpar por nossas escolhas ou ações.
Por outro lado... talvez seja hora de aceitar que eu estou com muito sono PODSMFPOMSGPM
Obrigada por esse conto LINDÍSSIMO! Ele requeriu talento, sem dúvida ;)
LINDOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO. EU AMEI DEMAIS. RESPIRA FUNDO. PERFEITO.
ResponderExcluirUau.... que texto perfeito!! Lindo demais.
ResponderExcluirGostei a comparação com o alcool. É bem verdade isso, a gente não pode culpar as coisas sendo que fomos nós mesmos que escolhemos.
Precisa de muito talento pra escrever um texto tão bom assim.
É muita perfeição *-*
Amei!!
Beijo
http://agarotaeotempo.blogspot.com.br/
Oh, mana, pare com isso <3 Mas é, o que eu gostei nesse continho foi mostrar parte do que eu acredito. Vejo muita gente culpando o amor - ou a vida, etc e variáveis - pelas ações que A PRÓPRIA PESSOA faz. Eu mesma já fiz isso. Sou humana, sujeita a erros, poxa.
ResponderExcluirMas uma das coisas legais também é o desfecho. A aceitação da personagem principal de que o amor existe e o medo de não reconhecê-lo quando ele aparecer. Sei lá, às vezes a gente quebra a cara e fica com medo de se entregar de novo, e acaba descartando o que pode muito bem mudar a gente.
Me lembre de escrever algo sobre isso.
Te amo tanto tanto tanto <3 Eu definitivamente preciso parar de impedir você de dormir na hora certa. HAHA
RESPIRA, LARISSA, RESPIRA! HAHAHA obrigada <3
ResponderExcluirOlha só quem veio ser fofa aqui de novo :3 welcome back, Débora hahaha
ResponderExcluirEsse meu ~amor~ é mesmo um belo comparador. Mas é, vejo isso muito acontecendo, sabe? Não é só as menininhas que postam textos de dor no tumblr. A gente pode ir a casos mais extremos, tipo, alguns dias antes de escrever esse conto, eu vi um programa na TV que mostravam casos de mulheres que mataram seus maridos por ciúme/obsessão/etcetc
(eu espero que isso tenha feito sentido na sua cabeça como fez na minha)
E que perfeito que nada, para com isso! hahah Só estava divagando. Brigada mesmo, viu? Beijo!