Título original: Will Grayson,
Will Grayson
Editora:
Galera Record
Ano:
2013
Páginas: 225
Em uma noite
fria, numa improvável esquina de Chicago, Will Grayson encontra... Will
Grayson. Os dois adolescentes dividem o mesmo nome. E, aparentemente,
apenas isso os une. Mas mesmo circulando em ambientes completamente
diferentes, os dois estão prestes a embarcar em um aventura de épicas
proporções. O mais fabuloso musical a jamais ser apresentado nos palcos
politicamente corretos do ensino médio.
Sim, estou de volta com…
*pausa dramática* John Green! Oh, o inesperado choque! Quem diria, né? Mas,
admitamos, a culpa não é minha se John Green é um autor fabuloso com livros
fabulosos (a culpa é das estrelas). De modo que mais uma quinta-feira
chegou, e você tem que lidar com mais uma resenha John Green-esca. Há coisas
piores no mundo.
Tanto que o livro em questão
não foi escrito apenas por John Green, mas sim em parceria com David Levithan –
que, por sinal, é também um excelente autor. Na verdade, é a primeira vez que
leio algo da autoria de David, mas fiquei agradavelmente surpreendida com a sua
abordagem a temáticas mais pesadas como a saúde mental e a depressão, bem como
com a sua construção dos personagens. Depois de pesquisar outras resenhas, deu
para notar que nem todos partilham da minha opinião (houve muita gente
desgostosa com a decisão de David de pegar nas regras da capitalização e
atirá-las pela janela, embora eu a louve plenamente), mas mais para a frente
teremos a oportunidade de discutir melhor sobre isso.
“Will, você pode escolher a dedo
seus amigos e pode meter o dedo no próprio nariz, mas não pode meter o dedo no
nariz do seu amigo.”
1.
O universo
Mais
uma vez, volto a frisar: John Green não é um autor do fantástico ou
sobrenatural, e neste livro, David também não o é. Estamos
lidando com uma realidade que conhecemos, inclusivamente com casos que já
vivemos/lemos/sobre os quais ouvimos falar – em particular, casos de depressão,
questões sobre a orientação sexual, adolescentes revoltados, adolescentes
fabulosos, amizades colocadas sobre pressão… enfim, temos à nossa frente todo
um mundo que conhecemos, mas que nem sempre entendemos. Tal como em Cidades de Papel, o livro circula em
redor de adolescentes americanos (dessa vez, de Chicago, outro local onde John
morou) cuja vida se encontra imensamente dificultada por frequentarem o ensino
médio. Quem não simpatiza com eles, né?
Entretanto, de fato acontece
pelo menos uma coisa fantástica no decurso do enredo: Will Grayson encontra-se
com, nada mais, nada menos… *nova pausa dramática* Will Grayson! Imagine-se a
si mesmo, apenas metido na sua vida, tendo uma noite que parecia não ter como piorar,
e dando então de caras com seu xará. Homônimo, se quisermos ser chiques. É realmente algo surpreendente, mas
totalmente plausível de acontecer – e que, provavelmente, já aconteceu – numa
realidade como a nossa.
2.
A escrita e o enredo
Uma
das características mais interessantes de Will
& Will é a co-autoria, que implicou não só a existência de dois
autores, como também de dois narradores diferentes.
Pessoalmente, acho que uma das coisas mais difíceis deve ser escrever em
parceria, porque tem que haver compromisso, comunicação, confiança e sinceridade;
tudo isso, enquanto você está tentando traduzir as imagens que estão dentro do
seu cérebro para um pedaço de papel. Sério, se você conseguir fazer uma boa
parceria, coesa e dinâmica, com outra pessoa, vocês os dois são dignos de se
desposarem (imaginem só as crianças geniais que esses dois autores teriam)!
Mas John e David ultrapassaram bem esse obstáculo, criando cada um o seu
próprio Will, bem como o contexto em que ele se insere, e ainda dividindo entre
si os capítulos – John escreve os capítulos ímpares e David, os pares. Isso deu uma dualidade à narração do livro
que deixa clara a diferença entre os dois Wills, suas vidas e suas
personalidades, sem, no entanto, permitir que a coesão da obra se perca. No
geral, é uma obra de linguagem direta e fácil de interpretar – como o próprio
John já afirmou, ideal para ser lida em voz alta. Só tenho que aplaudir.
Contudo – e como já disse lá
em cima –, houve muita gente desagradada com a escolha feita por David de
deixar seu will escrever tudo em letras minúsculas. tudo mesmo. bem assim. até
títulos de seriados, e livros, e coisas do gênero. Acharam que retirava a
formalidade ao livro (e isso é necessariamente mau?), ou simplesmente, por não
estarem acostumados, acharam estranho.
Olha gente, eu já li José Saramago para a escola e, acreditem, o que David fez
não tem de estranho/pouco ortodoxo/completa-e-originalmente-imprecedido. A língua não só falada, mas também escrita,
só tem interesse enquanto pudermos reinventá-la – e isso sempre implica quebrar
algumas regras tomadas como sagradas. Seja porque o seu will se vê como uma
pessoa deprimida e indigna do Uso Correto da Capitalização, seja porque esse
tipo de escrita se aproxima mais à linguagem cibernáutica (que assume um
importante destaque na vida de will), o certo é que existem muitas razões que
dão sentido ao estilo de escrita de David. Acreditem que, para uma pessoa que
já leu livros praticamente sem pontuação, isso não é nada – e também não causa qualquer perda à obra. Reinventar nossas formas de contar
histórias é essencial para o progresso da literatura.
Quanto
ao enredo, posso dizer que o achei intrigante, mas não necessariamente
brilhante. Você fica medianamente interessado no que virá em
seguida, mas não há grandes momentos de tensão enigmática – tirando, talvez, no
meio e no final. Na verdade, o livro
demora um pouco para ganhar ritmo, sendo que o início se foca sobretudo em
deixar você entender como é a vida desses dois garotos. O ponto chave do
enredo, porém, só surge perto do capítulo sete, quando os dois Wills finalmente
se encontram. A partir daí, o ritmo acelera e você se sente cada vez mais preso
à história, perguntando-se como os personagens lidarão com a situação. No fundo, é um enredo que gira em redor
de uns poucos momentos chave, sendo que as principais transformações são muito
mais mudanças graduais que reviravoltas impressionantes. Contudo, temos que
admitir que, até aí, a obra é fiel à realidade retratada. Tal vida, tal livro.
“— Você acredita em revelações? — pergunta. Recomeçamos a
andar.
— Hã, pode traduzir a pergunta?
— Tipo, você acredita que a atitude das pessoas possa
mudar? Um dia você acorda e percebe alguma coisa de uma forma como nunca viu
antes, e bum, uma revelação. Alguma coisa está diferente para sempre. Você
acredita nisso?
— Não — digo. — Não acredito que nada aconteça de
repente. […] Quero dizer, qualquer coisa que aconteça de repente provavelmente
vai desacontecer de repente, sabe?”
3.
Os personagens
Com
dois autores criando um mesmo livro, não era de esperar menos do que uma
multiplicidade de personagens – e é exatamente isso que
encontramos em Will & Will. Começando
pelos dois protagonistas, vemos duas pessoas que concordam plenamente em como a
melhor forma de levar a vida é não se importar muito com nada. Ambos os Wills
estão desiludidos e têm uma visão um pouco derrotista da vida logo no início da
narrativa, mas will (o de David),
por ser clinicamente depressivo, é o
que terá mais dificuldade em abandonar essa perspetiva. Will (o de John) é mais
animado, tem mais amigos (embora
não tantos assim e não propriamente “escolhidos a dedo”), tem uma família estável e compreensiva. Além
disso, não tem que lidar com o fato de ser secretamente
gay, como o segundo will – mas tem sim que lidar com Tiny Cooper, seu melhor amigo enorme, homossexual e que muda de amor
como quem muda de camisa. E pode apostar que Tiny Cooper muda ambos com uma
frequência impensável.
“Tiny Cooper não é a pessoa mais gay do mundo, tampouco é
a maior pessoa do mundo, mas acredito que ele possa ser a maior pessoa do mundo
que é muito, muito gay, e também a pessoa mais gay do mundo que é muito, muito
grande.”
Depois temos as garotas: Jane Turner, uma garota extremamente inteligente e com um pretensioso gosto musical,
que Will vem a conhecer por Tiny, e que o fará entender melhor a vida e as
relações através de analogias mega intelectuais; e Maura, gótica e melhor (por ser única) amiga de will, interessada
em passar a ser algo mais, mas com quem ele nunca é exatamente sincero (porque
se fosse, ela já saberia que lhe falta a única coisa que lhe poderia dar uma
chance com will, né *cofcof*). Depois
desses, temos ainda mais alguns personagens, a maioria adolescente –
tirando os pais dos dois Wills –, com quem ambos os protagonistas interagem,
sobretudo no ambiente escolar.
“maura
não está exatamente à minha espera antes da escola, mas eu sei, e ela sabe, que
vou procurar por ela onde estiver. em geral recorremos a isso para que possamos
dar algumas risadas ou algo assim antes de irmos embora. é como aquelas pessoas
que se tornam amigas na prisão, embora nunca fossem nem mesmo se falar se não
estivessem ali. é assim que eu e maura somos, acho.”
No
geral, todos os personagens são realistas: há coisas em cada um
deles com as quais você se irá identificar e outras das quais você não irá
gostar. Sinceramente, achei muito difícil simplesmente me atirar de cabeça e
amar qualquer um dos personagens (embora Tiny me tenha deixado muito tentada),
porque você está consciente dos defeitos
de cada um deles ao longo de toda a obra. Há até momentos de tensão em que
você não sabe quem está certo ou errado, visto que ambos os lados têm seus
motivos para se sentirem desiludidos.
Isso se torna cada vez mais claro à medida que o livro avança, deixando o
leitor com a impressão de que, nessa história, tal como na vida real, a verdade
é algo extremamente complexo e a culpa não é (das estrelas) apenas de
uma pessoa, mas de todos os envolvidos.
4.
A temática
Muita
gente provavelmente lhe dirá que esse é um livro de temática gay. Isso é
mentira. Will & Will
fala sobre homossexualidade, tem personagens homossexuais, relata relações
homossexuais, mas jamais se arroga a afirmar ser um livro cujo objetivo é lutar
pelos direitos LGTB. Will & Will é um livro sobre amor.
E, dentro do amor, encontramos tanto relações amorosas homossexuais como
heterossexuais – mas encontramos também relações familiares, relações de
amizade e a relação que temos com nossa autoestima. A obra se debruça sobre todos esses tipos de amor, explorando como e
porque nos é tão difícil assumir que amamos não só a pessoa por quem estamos
apaixonados, como também nossos pais, amigos e até nós mesmos. Ela deixa
bem claro que todas essas vertentes da nossa vida se completam, retirando o
amor romântico do pedestal em que, durante anos e anos, nossa sociedade e
cultura o têm colocado. É essa
importância verdadeiramente completa e complexa que é dada ao amor que, para
mim, faz o livro valer tanto a pena. Uma reflexão importante sobre a forma como
nós próprios lidamos connosco e com as pessoas que temos à nossa volta.
“tiny: eu
sei que não posso mudar seu pai, sua mãe ou seu passado. mas sabe o que posso
fazer?
sua outra
mão sobe pela minha perna.
eu: o quê?
tiny:
outra coisa. é isso que posso lhe dar. outra
coisa.”
5.
Tópico surpresa: A homossexualidade
Bem, suponho que o “tópico
surpresa” de hoje não seja tão surpreendente assim. Você pode até perguntar:
“ué, Sofia, você não acabou de dizer que Will
& Will não é sobre homossexualidade?” Sim, meu caro leitor, você tem
toda a razão. A questão é que vivemos num mundo em que a homossexualidade é
ainda fonte de debate e discussão, de modo que qualquer livro que lide com ela
vai ser julgado enquanto um “livro sobre homossexualidade”. Mas o bom de Will & Will é que ele não afirma ser
a fonte de explicação de todas as coisas homossexuais. De todo! Os autores
deixaram implícito, mas bem claro, que retratavam apenas uma pequena porção de
toda a incrível variedade de homossexuais que existem. Assim como de
heterossexuais. A verdade, meus caros, é
que qualquer pessoa é um mundo em si mesma; cada um de nós é intrinsecamente
complexo e contraditório e uma riqueza inimitável – independentemente da sua
sexualidade. Will & Will
retrata isso mesmo, através de um Tiny Cooper, que incorpora muitas das
características que rotulamos como “gays” – ele gosta de musicais, tem uma
personalidade espampanante e é simplesmente
fabuloso –, e outras que nem por isso – ele joga futebol americano, gente,
isso é tipo… o topo da masculinidade
lá –; mas também através de um will cuja personalidade engloba a
homossexualidade, e não o oposto, e de outros personagens como Gideon, Gary,
Nick, etc.
O
que acontece nesta obra é que o personagem homossexual é libertado, de uma vez
por todas, de todos esses preconceitos e preocupações com estereótipos. Oh,
Tiny Cooper parece ser o típico melhor amigo gay? Pedimos desculpa pelo
incômodo, mas ele não vai deixar de gostar de musicais só porque isso é
“tipicamente gay”. Quem é você para
dizer que isso o torna num estereótipo? Ele é um personagem repleto de nuances
sutis, de dilemas interiores, de motivações e desilusões. Não é certamente
gostar de musicais que lhe vai retirar toda essa riqueza. E will? will não
passa seus dias obcecado com ser ou deixar de ser homossexual – apesar de ser
obcecado com sua paixão, Isaac –, simplesmente é homossexual e fim. Os autores
não começam o texto do gênero: “então, um desses Wills é hetero e o outro é
gay, achamos importante que você saiba isso desde já”. Não! Isso não tem uma influência particular na
personalidade do personagem – faz parte de sua personalidade, mas não a domina
ou define.
E gente, com uma obra que
não coloca a homossexualidade no centro, como que dizendo “oh, isto é um tema
extremamente especial que temos que tratar com todo o cuidado e carinho e
atenção”, só podemos ganhar. A verdade é que a homossexualidade é banalizada
nesse livro. E isso é tudo aquilo de que
a homossexualidade precisa nesse momento: de ser tratada como uma coisa normal.
Porque é isso que ela é.
Conclusão
Eu li Will & Will de um fôlego só, numa maratona de seis horas que
discorreu suavemente. O livro em si não é inacreditável ou puramente genial…
mas é um livro bom. É um livro direto e simples de ler, o que torna o processo
de leitura gostoso e fácil. Você provavelmente vai acabar por se identificar
com os personagens, por sentir raiva quando eles erram, por festejar quando
eles se acertam, e por adorar quando…
hmm, certas coisas acontecem. Não vai
ser o melhor livro da sua vida – ou quem sabe, talvez o seja para si – mas
conterá lições e reflexões bem conseguidas, desde que você esteja disposto a
verdadeiramente escutar o que os personagens têm para dizer. E, acredite, esses
personagens têm bastante para dizer.
Um livro que decididamente
valeu as seis horas que investi nele – e não deixe que te façam pensar o
contrário, apenas porque a co-autoria dificultou a vida a algumas pessoas. A
ideia do livro realmente é ter dois narradores de personalidades bem
diferentes, mas, garanto, ambos os autores se esforçaram para que isso nunca
custasse qualquer tipo de coesão e coerência à história. Pessoalmente, acho que
eles fizeram um trabalho de louvar.
“é
por isso que chamamos as pessoas de ex, acho — porque os caminhos que se cruzam
no meio acabam se separando no fim. é muito fácil ver esse x como uma anulação.
mas não é, porque não tem como anular uma coisa assim. o x é um diagrama de
dois caminhos.”
Pontuação final: